Uma jovem visita sua família em um castelo remoto e descobre segredos desagradáveis em 'A Virgem e os Mortos', do diretor Jesús Franco
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Christina von Blanc interpreta a protagonista de 'A Virgem e os Mortos', do diretor Jesús Franco |
Jesús Franco é, por definição, um cineasta inclassificável. Entre o erótico, o surreal e o grotesco, sua obra vagueia como um espectro, e A Virgem e os Mortos talvez seja uma das melhores representações dessa sua natureza fantasmagórica. Lançado originalmente em 1973, o filme teve um destino curioso: após sua finalização por Franco, as distribuidoras lançaram versões alternativas, com cenas extras de sexo e até uma versão mais voltada para o terror, com a inclusão de mortos-vivos.
O título original também sofreu alterações de versão para versão. Hoje, o filme pode ser encontrado como La nuit des étoiles filantes, Christina, princesse de l’érotisme e Une vierge chez les morts-vivants. Isso até onde eu pude rastrear. Assisti à versão original e, agora, me deparei com uma alternativa, com pelo menos 15 minutos de cenas extras. Confesso que não posso dizer com certeza qual das versões é essa, mas sei que os mortos-vivos estão lá, então estou assumindo que seja a versão de terror.
A história tem muitas semelhanças com La fille de Dracula, outro filme de Jesús Franco lançado no ano anterior. Como é costume nas obras do diretor, boa parte do elenco está presente nos dois filmes, o que aumenta ainda mais a sensação de déjà vu. A principal diferença é que, enquanto no filme de 1972 a heroína interpretada por Carmen Yazalde visita a família e descobre ser descendente de vampiros, em A Virgem e os Mortos a ameaça é um pouco mais discreta, ainda que com elementos igualmente fantasmagóricos.
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'A Virgem e os Mortos': Christina está pronta para ir para o castelo de sua família, mesmo após ser avisada que ninguém mora lá |
Christina von Blanc (La campana del infierno) interpreta Christina Benton, uma jovem muito linda e muito ingênua que deixa seu internato em Londres e viaja para a propriedade da família, uma espécie de castelo isolado em algum lugar de Montserrat, Portugal. Ela não está lá a passeio, mas para a leitura do testamento de seu pai, Ernesto, que ela nunca conheceu. Estranhamente, a proprietária mal-humorada da pousada onde Christina se hospeda diz a ela que ninguém mora lá ou sequer no vale circundante.
Como toda boa heroína linda e ingênua dos filmes de terror B dos anos 70, Christina não dá muita atenção ao aviso. Até porque o servo um pouco assustador de sua família, um homem de poucas palavras chamado Basílio, não demora a vir buscá-la enquanto ela desfila tranquilamente de roupas íntimas na recepção da pensão. Mas, assim que coloca os pés no castelo, Christina descobre que seus parentes são... estranhos, para dizer o mínimo.
A Virgem e os Mortos tem uma atmosfera de permanente inquietação. Nenhum dos parentes de Christina parece exatamente vivo; os diálogos flutuam entre o absurdo e o simbólico, e há algo de espectral em cada gesto, cada olhar. O próprio título original (que pode ser traduzido como “A Noite das Estrelas Cadentes”) antecipa o tom cósmico e melancólico do filme — como se estivéssemos acompanhando o último suspiro de um mundo perdido.
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A família de Christina é um pouco estranha, mas não tanto quanto o servo Basílio |
Visualmente, A Virgem e os Mortos é um delírio poético eroticamente carregado. Franco filma os corredores do castelo como um labirinto de sombras e desejo, transformando cada cena em uma coreografia lúbrica, quase litúrgica. A sensualidade aqui é mórbida, sem pressa, hipnótica. A personagem de Christina é uma espécie de virgem sacrificial, arrastada para um destino que ela mesma não compreende, entre beijos lânguidos com mulheres pálidas e presságios de morte envoltos em música fúnebre.
Von Blanc entrega uma performance que flutua entre a ingenuidade e a abnegação, com uma entrega física que evoca tanto fragilidade quanto fascínio. Fantasia e realidade parecem se fundir enquanto ela se move delicadamente por corredores soturnos e florestas exuberantes, tira um tempinho para nadar nua no lago mais próximo, e tem encontros desagradáveis com moradores mal-intencionados. A heroína com baixa tolerância ao calor até encontra um candidato a namorado. E, é claro, encontra os mortos-vivos, ainda que esses se limitem a atormentá-la apenas nos pesadelos.
Dependendo da versão a que você assiste, Christina pode ter tanto pesadelos recorrentes, em que é perseguida e finalmente encurralada pelos mortos, quanto um único pesadelo que dura vários minutos. Também dependendo da versão, a protagonista pode ser agredida pela própria família, numa cena mal filmada e mal editada, com o uso evidente de dublês de corpo, enquanto o fantasma de seu pai acompanha tudo pendurado em uma corda.
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Christina conhece a prima Carmencé (Carmen Yazalde) no filme 'A Virgem e os Mortos' |
Carmen Yazalde (sob o pseudônimo Britt Nichols) surge como Carmencé, a prima que parece mais saída de um sonho febril do que de um álbum de família. Suas aparições representam bem o tipo de erotismo que Franco cultivava: simbólico, panteísta e sempre à beira da dissolução. Num dos momentos mais interessantes do filme, a personagem de Yazalde parece beber o sangue de uma mulher — um eco muito bem-vindo de Luisa, a vampira que ela interpretou no longa do ano anterior.
Howard Vernon (O Lago dos Zumbis) interpreta o tio Howard, um espectro de dignidade gasta, cuja presença em cena é marcada por olhares oblíquos e silêncios ameaçadores. E como esquecer Jesús Franco em pessoa como o servo Basílio, com cara de paspalho e jeito de corvo assustado? É uma performance tão tosca quanto divertida — quase uma paródia involuntária da própria iconografia de servos amaldiçoados.
Um detalhe curioso e absolutamente irresistível está nos closes que pipocam com frequência na tela: olhos arregalados em zoom abrupto, bocas entreabertas, trilha sibilante. Se nos anos 70 tais escolhas talvez fossem vistas como hipnóticas, hoje soam deliciosamente kitsch, como se o filme risse da própria solenidade. Esses momentos dão a A Virgem e os Mortos uma aura camp que não compromete sua beleza plástica — pelo contrário, a torna ainda mais encantadora.
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'A Virgem e os Mortos': Christina encontrou um lago, e você sabe o que acontece quando garotas encontram lagos em um filme B dos anos 70, não é? |
É importante ressaltar que essa versão com as cenas de mortos-vivos adicionadas posteriormente destoa fortemente do espírito original. Jean Rollin faz o que sabe fazer melhor — inserir figuras cadavéricas vagando por bosques nebulosos — mas o efeito é mais de interferência do que de coesão. O filme de Franco, por si só, é uma obra mais delicada, quase uma fábula de eros e thanatos. Um comentário em áudio que abre uma das versões da obra a descreve como uma espécie de terapia artística do luto para Franco, na época à beira da depressão devido à morte repentina de sua musa, a atriz Soledad Miranda.
Apesar do ritmo lento e da narrativa deliberadamente difusa, nos últimos anos essa pérola do horror gótico europeu, que se equilibra entre o sublime e o risível, tem se consolidado como uma obra cultuada do diretor, um exemplo raro de filme que, mesmo quando sabotado por suas próprias distribuições, ainda consegue manter um núcleo de poesia doentia, beleza macabra, sensualidade melancólica e charme sobrenatural. Não é o melhor filme de Franco, que tem mais de 200 obras em sua filmografia, mas diverte enquanto dura.
Nota: 6,5/10
Título Original: Une vierge chez les morts-vivants.
Título Nacional: A Virgem e os Mortos.
Gênero: Drama, terror.
Produção: 1973.
Lançamento: 1973.
País: Bélgica, França, Itália, Liechtenstein.
Duração: 1 h 45 min.
Roteiro: Jesús Franco, Paul D'Ales.
Direção: Jesús Franco, Pierre Quérut, Jean Rollin.
Elenco: Christina von Blanc, Carmen Yazalde (como Britt Nickols) Anne Libert, Rosa Palomar, Howard Vernon, Jesús Franco, Paul Muller.
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