Uma fábula sombria sobre medo, repressão e liberdade
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Anya Taylor-Joy interpreta Thomasin no folk horror 'A Bruxa'. Foto: © 2016 - A24 |
Antes de entregar a pílula para dormir em formato de longa-metragem conhecida como O Farol, Robert Eggers estreou na direção com A Bruxa, um filme que dividiu bastante opiniões. A crítica especializada o aclamou, chamando-o de clássico moderno. Já uma parcela significativa do público torceu o nariz diante das escolhas do diretor, que prioriza a atmosfera em detrimento das cenas de terror convencionais.
Minha tolerância com essa categoria de filmes, conhecida como pós-terror (ou "terror elevado"), é extremamente baixa. Na verdade, só não a considero a mais chata da história do cinema porque o "terror social" — aquelas palestras disfarçadas de filmes em que diretores e roteiristas tentam nos educar em vez de entreter — consegue ser ainda pior. Estranhamente, A Bruxa foi um caso à parte. O filme me conquistou já nos primeiros minutos. Acabou se tornando um dos meus favoritos dos últimos anos.
Esse mergulho sombrio nas raízes do folclore colonial americano nos leva para a Nova Inglaterra do século XVII, acompanhando o drama de uma família puritana expulsa de sua comunidade religiosa. Forçados a viver isolados em uma cabana à beira de uma floresta, eles veem essa nova vida, marcada pela rigidez moral e pelo isolamento extremo, se transformar em pesadelo quando eventos estranhos e inexplicáveis começam a ocorrer, ameaçando destruir os laços familiares e a própria fé que os sustenta.
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Ralph Ineson como William no filme 'A Bruxa'. Foto: © 2016 - A24 |
O diretor se sai muito bem transformando a fé inabalável em fonte de terror. A rigidez religiosa da família não os protege do mal; ao contrário, os aprisiona em um ciclo de culpa, paranoia e punição mútua. O sobrenatural está presente, sim, em momentos específicos e impactantes, mas o verdadeiro horror nasce do fanatismo e da incapacidade dos personagens de lidar com seus desejos e fragilidades. Nesse sentido, A Bruxa funciona tanto como relato de terror folclórico quanto como crítica ao puritanismo.
No centro da narrativa está a jovem Thomasin, vivida por Anya Taylor-Joy em sua estreia no cinema. E a futura estrela de Fragmentado e Noite Passada em Soho faz um ótimo trabalho. Sua interpretação mistura vulnerabilidade e força, sustentando todo o arco dramático. Acusada primeiro pelos irmãozinhos assustadores e depois pelos próprios pais de estar ligada a forças demoníacas, Thomasin torna-se o epicentro das tensões familiares, ao mesmo tempo vítima e catalisadora do colapso.
Ralph Ineson (O Senhor do Caos) e Kate Dickie (O Homem do Norte) oferecem performances intensas como os pais William e Katherine. O ator mirim Harvey Scrimshaw (Laranjas ao Sol) também se destaca como Caleb, responsável por alguns dos momentos mais perturbadores do longa. Os diálogos são muito bem escritos, e o elenco reproduz com rigor a linguagem arcaica do período — um detalhe que pode soar estranho para alguns, mas que reforça a autenticidade histórica do filme.
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Coisas muito ruins acontecem com a família de Thomasin no filme 'A Bruxa'. Foto: © 2016 - A24 |
Desde os primeiros minutos, Eggers deixa claro que não está interessado em sustos fáceis. A atmosfera é construída de maneira lenta, quase sufocante, onde cada detalhe do ambiente carrega um peso psicológico. A floresta, densa e impenetrável, não surge apenas como cenário, mas como uma entidade viva, que parece observar e devorar a família pouco a pouco. A decisão de filmar com luz natural e velas, em cenários meticulosamente reconstruídos a partir de registros históricos, confere realismo quase documental, ao mesmo tempo em que reforça o clima de estranheza.
A fotografia de Jarin Blaschke aposta em paletas frias e tons terrosos, intensificando a sensação de vazio e hostilidade. O enquadramento fechado e a ausência de qualquer sinal de civilização além da pequena cabana aumentam o peso do confinamento, fazendo com que a família pareça encurralada entre sua fé sufocante e o abismo da floresta. A montagem, lenta e calculada, prolonga cada instante de tensão, arrastando o espectador para dentro da mesma espiral de paranoia que consome os personagens.
A trilha sonora de Mark Korven aposta em coros dissonantes, cordas que soam como lamentos e silêncios prolongados que ampliam o desconforto. A música funciona quase como um sussurro maligno que invade cada cena, sugerindo a presença de algo invisível e inevitável. O design de som, marcado por ruídos secos e pela própria respiração dos personagens, contribui para uma experiência imersiva e desconfortável.
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Thomasin (Anya Taylor-Joy) desconfia que há algo espreitando sua casa em 'A Bruxa'. Foto: © 2016 - A24 |
Há momentos que permanecem gravados na memória: a súbita violência contra os animais da fazenda, os delírios febris de Caleb, a cena da amamentação e, claro, a perturbadora presença do bode Black Phillip. O final, ao mesmo tempo libertador e aterrador, solidifica o filme como uma fábula sombria sobre identidade, repressão e poder feminino, sem jamais perder o tom ambíguo que o torna tão hipnótico.
A Bruxa exige paciência e entrega, mas recompensa o espectador com uma experiência inquietante e profundamente atmosférica. Em vez de sustos, oferece uma jornada psicológica em que o mal não vem apenas da floresta sombria, mas também da fé cega, da opressão e da fragilidade humana. Com esse filme, Eggers mostra que o folk horror ainda tem muito a oferecer.
Nota: 9/10
Título Original: The VVitch: A New-England Folktale.
Título Nacional: A Bruxa.
Gênero: Terror, drama.
Produção: 2015
Lançamento: 2016.
País: Reino Unido, Canadá, Estados Unidos da América.
Duração: 1 h 32 min.
Roteiro: Robert Eggers.
Direção: Robert Eggers.
Elenco: Anya Taylor-Joy, Ralph Ineson, Kate Dickie, Harvey Scrimshaw, Ellie Grainger, Lucas Dawson, Julian Richings, Bathsheba Garnett, Sarah Stephens, Daniel Malik, Axtun Henry Dube, Athan Conrad Dube, Viv Moore.
RELACIONADOS: #A Bruxa #Robert Eggers #Anya Taylor-Joy #Ralph Ineson #Kate Dickie
ótima crítica!
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