Um policial vai a uma ilha escocesa em busca de uma menina desaparecida que os habitantes afirmam nunca ter existido, nessa obra-prima dirigida por Robin Hardy
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A sueca Britt Ekland como Willow no filme 'O Homem de Palha': quando ela dança, a temperatura sobe. Foto: © Rialto Pictures/ Studiocanal |
O Homem de Palha surgiu em uma época em que o cinema britânico buscava novas formas de se reinventar. Ganhou corpo a partir de um roteiro vagamente inspirado no romance Ritual, de David Pinner. O filme foi dirigido por Robin Hardy, que possui apenas três longas em sua filmografia. Contou com um elenco de peso que incluía Christopher Lee, Edward Woodward, Ingrid Pitt e Britt Ekland, ícone da beleza nos anos 60 e futura bond girl em 007 Contra o Homem com a Pistola de Ouro.
Como o projeto era de baixo orçamento, parte da equipe e do próprio elenco concordou em trabalhar com cachê reduzido, e alguns até de graça. O próprio Lee, que na época estava muito associado ao Conde Drácula devido à sua parceria com Peter Cushing na série de filmes de vampiros da produtora britânica Hammer, declarou mais de uma vez que não recebeu nada para participar do filme.
A produção passou por turbulências. O British Lion, responsável pelo filme, foi vendido para a EMI. Negativos foram perdidos. O novo produtor cortou várias cenas sem o conhecimento do diretor. Enquanto isso, a atriz Britt Ekland, que deveria aparecer nua no filme apenas da cintura para cima, ficou furiosa ao descobrir que uma dublê de corpo a substitui em uma cena de nudez completa.
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Todo mundo quer obstruir as investigações do sargento Howie no filme 'O Homem de Palha'. Foto: © Rialto Pictures/ Studiocanal |
Para completar, O Homem de Palha estreou timidamente em 1973 como suporte B — o filme exibido antes da atração principal, que naquele caso era Inverno de Sangue em Veneza. Após tantos problemas, provavelmente ninguém imaginava que aquela estranha mistura de mistério policial, folclore pagão e musicalidade inesperada se tornaria um dos maiores clássicos do cinema de terror, e um dos principais responsáveis pela popularização do subgênero conhecido como folk horror.
Hoje é possível encontrar várias versões de O Homem de Palha. Assisti ao original, de 88 minutos, em 2022. Essa semana, me deparei com uma versão de 101 minutos de duração. Essa restauração em 4k contém várias cenas recuperadas dos negativos perdidos, como o primeiro encontro de Willow e o Lord Summerisle. Outros momentos foram estendidos, como a apresentação na igreja e a cena da “Canção de Willow”. Acho que esse é um bom momento para fazer um retro review sobre essa obra-prima.
Woodward (série O Santo) interpreta Neil Howie, um sargento da polícia que viaja até uma remota ilha escocesa após receber uma denúncia anônima sobre o desaparecimento de uma pré-adolescente chamada Rowan Morrison (Gerry Cowper). Os sinais de que há algo estranho começam no instante em que coloca os pés na ilha e é informado que a garota da foto não é de lá. Eles se intensificam quando ele faz uma parada na lojinha de doces da suposta mãe da garota desaparecida, que lhe garante que a menina não existe.
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A bibliotecária interpretada por Ingrid Pitt está prestes a perder a cabeça em 'O Homem de Palha'. Foto: © Rialto Pictures/ Studiocanal |
Tal qual um besouro amarrado a um prego por uma linha de costura, quanto mais ele procura respostas, mais sente que está girando em círculos, preso a um mistério cada vez mais bizarro. Para piorar, Howie percebe que o povo da ilha está dedicado à prática de antigos rituais pagãos, em completo contraste com sua rígida moral cristã.
A pequena comunidade de Summerisle é retratada como um espaço isolado, onde a tradição se sobrepõe a qualquer influência externa. O choque cultural é central: de um lado, o puritanismo moral de Howie; de outro, a sensualidade e vitalidade dos habitantes da ilha, que praticam sexo ao ar livre e dançam nus ao redor de fogueiras. Essa oposição move a narrativa, criando momentos ora engraçados, ora carregados de tensão entre fé, desejo e repressão.
O filme nos leva a acreditar que estamos diante apenas de um mistério policial, mas aos poucos a atmosfera se transforma em algo muito mais sombrio. A fotografia de Harry Waxman capta a natureza escocesa com um olhar quase documental, conferindo autenticidade ao cenário bucólico, mas, ao mesmo tempo, revelando um subtexto ameaçador por trás de cada paisagem.
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Christopher Lee interpreta o líder de Summerisle no filme 'O Homem de Palha'. Foto: © Rialto Pictures/ Studiocanal |
A montagem, precisa e pontual, reforça a crescente sensação de que o protagonista está em um ambiente controlado por forças que ele não compreende. O uso da iluminação natural intensifica a atmosfera de realismo, mas, paradoxalmente, torna ainda mais inquietante a aura de sonho febril que envolve a ilha.
Os figurinos desempenham papel crucial na construção da atmosfera. Do traje formal e conservador do sargento Howie, que simboliza sua rigidez moral, às roupas coloridas e arcaicas dos habitantes da ilha, tudo reforça o contraste entre dois mundos irreconciliáveis. No clímax do filme, trajes cerimoniais, inspirados em tradições celtas, intensificam a sensação de estranhamento, transformando a celebração em algo tanto fascinante quanto aterrador.
A trilha sonora é outro elemento essencial para a identidade do filme. Ao contrário das músicas sombrias e dissonantes esperadas em uma obra de terror, aqui predominam canções folk que parecem inocentes, mas carregam significados obscuros. Essa escolha musical funciona quase como uma armadilha para o espectador, que é envolvido por melodias cativantes ao mesmo tempo em que testemunha rituais perturbadores.
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Willow e seu pai, Alder, administram a Pensão do Homem Verde no filme 'O Homem de Palha'. Foto: © Rialto Pictures/ Studiocanal |
A cena em que a personagem de Britt Ekland seduz o policial durante a famosa “Canção de Willow”, sintetiza perfeitamente essa dualidade. Hipnótica e desconcertante, a sequência não apenas coloca em xeque a fé inabalável do protagonista, mas também se torna um dos momentos mais intensos do longa. A cena é frequentemente lembrada como uma das danças mais sensuais do cinema de terror.
Woodward constrói um protagonista que, embora rígido e por vezes antipático, transmite convicção em sua fé e em sua missão, tornando sua jornada ainda mais trágica. Ingrid Pitt (Carmilla, A Vampira de Karnstein), mesmo em uma participação breve, adiciona magnetismo à narrativa, reforçando o clima sensual e desconcertante da ilha.
Lee brilha com intensidade inigualável no papel de Lord Summerisle. Com sua presença imponente e fala carismática, ele dá ao líder da comunidade uma aura de autoridade e, ao mesmo tempo, de encantamento. O próprio ator admitiu que este foi seu papel favorito no cinema.
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O sargento Howie percebe que as coisas estão prestes a ficar mais bizarras que já estavam no filme 'O Homem de Palha'. Foto: © Rialto Pictures/ Studiocanal |
A cena final de O Homem de Palha é um momento perturbador do cinema dos anos 70. O contraste entre a serenidade dos habitantes da ilha e o desespero do policial cria um impacto inesquecível, encerrando o filme com uma nota de horror absoluto que permanece na memória do espectador muito depois da projeção.
O Homem de Palha é uma experiência cinematográfica única, em que cada elemento — fotografia, música, figurino, atuação — se combina para criar uma obra atemporal. Mais de cinquenta anos após seu lançamento, continua a fascinar, incomodar e desafiar expectativas. Sua influência pode ser sentida em títulos recentes, como O Senhor do Caos, Apóstolo e Midsommar: O Mal Não Espera a Noite. Seu impacto, no entanto, jamais foi superado.
Nota: 10/10
Título Original: The Wicker Man.
Título Nacional: O Homem de Palha.
Gênero: Mistério, suspense, terror.
Produção: 1973.
Lançamento: 1973.
País: Reino Unido.
Duração: 1 h 28 min; 1 h 35 minutos; 1 h 41 min.
Roteiro: Anthony Shaffer.
Direção: Robin Hardy.
Elenco: Edward Woodward, Christopher Lee, Britt Ekland, Diane Cilento, Ingrid Pitt, Lindsay Kemp, Russell Waters, Aubrey Morris, Irene Sunters, Walter Carr, Ian Campbell, Leslie Blackater, Roy Boyd.
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