Um remake sem alma de 'O Homem de Palha', que transforma o clássico do folk horror em uma caricatura involuntariamente cômica
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O policial Edward (Nicolas Cage), completamente surtado durante um diálogo no filme 'O Sacrifício' |
Poucos filmes de terror sofreram tanto com uma refilmagem desastrosa quanto O Sacrifício. A produção tenta revisitar o clássico cult britânico de 1973, O Homem de Palha, mas o resultado é uma caricatura desajeitada que perde tudo aquilo que tornava o original tão fascinante e perturbador. O que era uma obra de folk horror sofisticada e enraizada no folclore europeu transformou-se em um thriller genérico — sem identidade, sem atmosfera e, pior ainda, sem entender o espírito do material que adapta.
Nicolas Cage interpreta Edward Malus, um policial da Califórnia emocionalmente fragilizado após não conseguir salvar a vida de duas pessoas em um bizarro acidente de trânsito. Durante sua licença médica, ele recebe uma carta de uma ex-namorada pedindo que vá até SummersIsle, uma ilha fictícia na costa de Washington, para investigar o desaparecimento de sua filha pequena.
O prólogo ambientado na Califórnia até tem certo potencial. Se fosse bem explorado, poderia render camadas interessantes ao personagem de Cage. O problema é que esse background não serve para absolutamente nada, a não ser como pretexto para as alucinações e pesadelos do protagonista. As coisas pioram quando Edward chega à ilha e percebemos que o diretor e roteirista Neil LaBute não está muito interessado em fazer um remake, mas sim em reinterpretar a história do filme original.
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Ellen Burstyn interpreta a irmã SummersIsle em 'O Sacrifício' |
O novo roteiro esvazia qualquer reflexão cultural ou religiosa presente no clássico. A oposição entre fé cristã e paganismo, que conferia tensão e complexidade ao filme de 1973, dá lugar a uma narrativa simplista e mal estruturada, onde tudo é reduzido a vilões e vítimas sem camadas. O senso de comunidade bizarra, cuidadosamente construído no passado, vira apenas uma colônia de pessoas excêntricas sem propósito ou identidade.
Enquanto o filme de Robin Hardy mergulhava em uma ambientação rural misteriosa, repleta de músicas folclóricas, figurinos excêntricos e uma aura quase ritualística, O Sacrifício aposta em cenários frios e sem vida, filmados em florestas anônimas dos Estados Unidos. Não há charme, não há estranheza, não há senso de tradição. O que vemos é apenas um palco genérico para a trama, que não transmite nada além de tédio. A trilha sonora segue o mesmo caminho: esquecível, incapaz de imprimir tensão ou reforçar o mistério, em contraste direto com as canções marcantes do longa original.
Quando falamos em personagens, a decepção se multiplica. Nicolas Cage (Mãe e Pai), um ator capaz de grandes desempenhos, entrega aqui uma das atuações mais desastradas de sua carreira. Seu Edward Malus é um policial perdido em diálogos absurdos, reagindo de forma exagerada em praticamente todas as cenas. É impossível não lembrar das famosas sequências em que Cage grita de maneira histérica ou encara situações ridículas, que desde então viraram material para incontáveis memes na internet.
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É sério que você não vai dançar, Willow? |
A descaracterização dos personagens secundários também é gritante. Lord SummersIsle, interpretado com brilhantismo pelo grande Christopher Lee no filme original, agora é uma mulher. Ellen Burstyn, sempre lembrada como Chris MacNeil em O Exorcista, faz o possível para conferir credibilidade à personagem, mas com diálogos tão ruins — que, como na maioria dos trabalhos de LaBute, giram em torno da guerra dos sexos —, nem seu carisma salva. O choque se aprofunda quando somos apresentados a Willow, interpretada aqui por Kate Beahan, de Plano de Vôo.
Se no original a Willow da atriz sueca Britt Ekland marcava presença com sensualidade e uma aura de mistério, no remake ela não passa de um estereótipo mal escrito — uma figura apática, sem carisma, complexidade dramática ou impacto narrativo. E pior: os realizadores tiveram a ousadia de cortar sua cena de dança, um dos momentos mais inesquecíveis do filme de 1973. Um remake de O Homem de Palha sem a "Canção de Willow" é quase uma heresia cinematográfica.
A única personagem que gera um ligeiro interesse em O Sacrifício é a irmã Honey, interpretada pela carismática Leelee Sobieski, de A Casa de Vidro, mas sua história nunca chega a ser desenvolvida. A direção de LaBute contribui ainda mais para a catástrofe. O filme não tem ritmo, não há a progressão gradual de mistério que fazia do primeiro The Wicker Man uma experiência inquietante; no lugar disso, o público é bombardeado com cenas aleatórias, diálogos mal escritos e uma escalada de absurdo que culmina em um clímax constrangedor.
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Edward desconfia que tanto a professora quanto seus alunos estão mentindo descaradamente em 'O Sacrifício' |
É difícil não cair na risada diante de certas cenas, como as já infames sequências das abelhas ("Not the bees!") ou as brigas de Cage com mulheres mascaradas, com direito a socos e moças voando contra paredes. São momentos que deveriam provocar horror e tensão, mas que se tornaram piadas instantâneas. O filme não apenas falha como terror, mas também se sabota como remake, destruindo qualquer chance de diálogo com o clássico britânico.
O Sacrifício sobrevive apenas como curiosidade involuntariamente cômica. Para quem já viu o original, a comparação é dolorosa; para quem não viu, é apenas um desastre cinematográfico que parece muito disposto a apagar a memória de um dos filmes mais singulares do folk horror. Felizmente, não consegue, e acaba servindo apenas como lembrete de que certas histórias não podem — e não devem — ser reduzidas a fórmulas vazias.
Nota: 1/10
Título Original: The Wicker Man.
Título Nacional: O Sacrifício.
Gênero: Suspense, terror.
Produção: 2006.
Lançamento: 2006.
País: Estados Unidos da América, México, Canadá, Alemanha, Reino Unido.
Duração: 1 h 42 min.
Roteiro: Neil LaBute.
Direção: Neil LaBute.
Elenco: Nicolas Cage, Ellen Burstyn, Kate Beahan, Frances Conroy, Molly Parker, Leelee Sobieski, Diane Delano, Michael Wiseman, Erika-Shaye Gair.
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