Demi Moore e Margaret Qualley estrelam esta sátira sangrenta sobre o culto à juventude e os padrões de beleza em Hollywood.
Demi Moore e Margaret Qualley interpretam duas versões da mesma mulher nesta sátira sangrenta sobre o culto à juventude e os padrões de beleza em Hollywood.
Sue (Margaret Qualley) não dispensa caras e bocas no body horror 'A Substância'. Foto: MUBI. |
Por décadas, o cinema glorificou a beleza feminina. Imagens como a de Ursula Andress emergindo do mar em 007 Contra o Satânico Dr. No (1962) e Raquel Welch trajando o "primeiro biquíni da história da humanidade" em Mil Séculos Antes de Cristo (1966) ficaram imortalizadas na cultura pop. Essa celebração não ficou de fora do terror, gênero que também consagrou beldades como as vampiras da Hammer, as musas de acampamentos de verão em Sexta-Feira 13 e as scream queens dos anos 80, como Linnea Quigley e Barbara Crampton.
A partir da década de 2000, porém, o culto à beleza sofreu mudanças radicais. Movimentos feministas e debates sobre sexualização feminina ganharam força, desafiando representações tradicionais. Hoje, a câmera que antes reverenciava curvas é frequentemente monitorada por fiscais de virtude nas redes sociais. E eles estão prontos para sacar da manga a carta da objetificação feminina sempre que um cineasta ousa mostrar mais do que o rosto e o pescoço de uma atriz em um filme.
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Nesse cenário, a mensagem de A Substância, um filme de terror regado a sangue e neon que explora o impacto da obsessão pela juventude e beleza na indústria do entretenimento, pode parecer atrasada. Mas a diretora e roteirista francesa Coralie Fargeat tem uma boa desculpa para isso. Pelo tema do filme, você provavelmente deve estar pensando que vai dar de cara com outra tosqueira woke repleta de palestras sociais que você não pediu para ouvir. Pois eu lhe asseguro que não é o caso aqui. Assim como Jordan Peele, Fargeat sabe que a mensagem nunca deve se sobrepor ao entretenimento. E A Substância tem entretenimento de sobra.
Elisabeth (Demi Moore) encara os fantasmas do espelho no filme 'A Substância'. Foto: MUBI. |
Demi Moore (Ghost: Do Outro Lado da Vida) interpreta Elisabeth Sparkle, uma atriz que alcançou os mais altos degraus da fama, mas que agora, aos 50 anos, está relegada a um programa de fitness na grade diurna da TV. Nós a conhecemos suando em um collant azul durante um episódio do programa. Está deslumbrante, mas aparentemente não deslumbrante o suficiente para Harvey (Dennis Quaid, de Hóspede Indesejado), o chefe do estúdio que gosta de devorar camarões em close-up. É nesse momento que Elisabeth descobre que, na indústria do entretenimento, quase tudo é permitido — menos envelhecer.
Desempregada, deprimida, assombrada por espelhos e impotente diante do avanço da irrelevância, Elisabeth resolve experimentar "A Substância", uma misteriosa droga clandestina de reprodução celular que promete criar uma versão melhorada dela mesma: mais jovem, mais sexy e à prova de rugas. Se você assistiu a Re-Animator, a simples constatação de que a droga é uma vacina de coloração verde-neon será suficiente para acender todos os sinais de alerta. Infelizmente, nossa heroína só percebe seu erro quando já é tarde demais.
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Em seu filme de estreia, o insanamente divertido e sanguinolento exploitation feminista Vingança, Fargeat demonstrou um talento impressionante para compor imagens belíssimas e carregadas de simbolismo. Ela repete a dose em A Substância. Do figurino com cores que moldam as personalidades de cada personagem aos corredores que remetem a O Iluminado, passando pelo apartamento onde cada peça parece ter sido posicionada para contar uma história, tudo no filme salta aos olhos.
Em 'A Substância', garotas bonitas devem sorrir, menos quando estão escolhendo roupas. Foto: MUBI. |
Igualmente impressionante é a habilidade da diretora para construir um mundo que parece perdido no tempo. Cenários e figurinos remetem à opulência exagerada dos anos 80 e 90. Enquanto isso, a televisão no apartamento de Elisabeth e uma cena envolvendo uma mensagem de texto indicam que estamos na época atual. Já a tecnologia por trás da substância e o depósito farmacêutico, que parece ter saído de 2001: Uma Odisseia no Espaço, nos transportam para o que aparenta ser um futuro próximo.
Essa atemporalidade serve como uma barreira contra o argumento de que a crítica à maldição do envelhecimento em Hollywood chegou atrasada. Mas, ao mesmo tempo, é um lembrete de que a obsessão com juventude e beleza transcende épocas, perpetuando padrões tóxicos. A diretora Anna Biller já havia utilizado esse recurso em sua deliciosa fantasia de terror A Bruxa do Amor (2016). Em ambos os casos, o resultado é fascinante.
Independentemente da época em que o filme se passa, Fargeat parece se divertir, emulando de maneira exagerada a maneira como os diretores retratavam as mulheres nos filmes antigos. Ela também já havia feito isso em Vingança, mas aqui dá um passo à frente. A câmera acompanha Sue, a replicante anatomicamente perfeita interpretada por Margaret Qualley (Santuário), com um olhar intencionalmente voyeurístico. Frequentemente, entrega closes hilariamente indiscretos, além de cenas gratuitas de nudez feminina que certamente ganhariam um like de Jesús Franco e de Roger Corman.
Se tivesse assistido 'Re-Animator', Elisabeth (Demi Moore), de 'A Substância', saberia que vacinas verde-neon são sinal de perigo. Foto: MUBI. |
Embora pareça um aceno ao público masculino — e, de certa forma, é —, essa abordagem também é uma sátira, mais ou menos como Amy Holden Jones fez em Slumber Party – O Massacre, o cult clássico de 1982 que mostra um assassino perseguindo lindas garotas durante uma festa do pijama. O apelo sexual e a beleza generalizada deste híbrido de Gremlins, O Retrato de Dorian Gray e A Morte Lhe Cai Bem também servem a outro propósito, que fica claro quando Elisabeth deixa de cumprir certas regras, e os efeitos colaterais da substância se revelam de maneira assustadora.
À medida que a atriz atormentada e sua versão cada vez mais empolgada iniciam uma guerra pelo equilíbrio de seus recursos compartilhados, a beleza dá lugar ao horror, expondo as consequências de tentar viver à altura de padrões impossíveis. Corpos se contorcem, líquidos viscosos escorrem e os limites da humanidade se esvaem em cenas que desafiarão a resistência do público.
Tudo é acompanhado por alguns dos efeitos especiais mais indigestos dos últimos anos — o tipo de coisa que deixará felizes os fãs de A Mosca e outros filmes do mestre do body horror, David Cronenberg. A edição e a mixagem de som se alinham com os choques visuais, contribuindo para gerar o máximo de desconforto. No meio do caos, a diretora costura uma fábula impiedosa e divertidíssima sobre o medo de envelhecer, os problemas de uma identidade moldada pelas expectativas alheias e a violência que algumas pessoas estão dispostas a infligir a si mesmas para se adequar aos padrões impostos pela sociedade.
Sue (Margaret Qualley) está pronta para mais um episódio de 'Pump It Up With Sue' no filme 'A Substância'. Foto: MUBI. |
Demi Moore entrega uma performance poderosa como a atriz incapaz de enxergar a própria beleza, lutando contra a própria imagem e contra o vício em uma droga que pode destruir sua vida. Margaret Qualley dá um show à parte, misturando charme natural e vulnerabilidade feminina enquanto gira em seu collant rosa cintilante e faz caras e bocas para compor a versão mais jovem de Elisabeth. Dennis Quaid, por sua vez, está hilário como o produtor de TV insensível, que funciona como uma caricatura de tudo que é cruel e voraz em Hollywood.
A Substância é um filme bizarro, visualmente lindo e perturbador, e deliciosamente provocativo. Ao mesmo tempo em que critica os padrões de beleza e a obsessão pela juventude, oferece uma experiência de puro entretenimento, com doses generosas de horror, comédia e estética extravagante. Acredito que os 20 minutos finais podem dividir opiniões, pois algumas oportunidades de encerramento são desperdiçadas, estendendo um desfecho que, para alguns, pode parecer exagerado. Ainda assim, a ousadia do filme é difícil de ignorar.
Nota: 8.3/10
Título Original: The Substance.
Gênero: Terror, ficção científica, drama.
Produção: 2024.
Lançamento: 2024.
País: Reino Unido, França, Estados Unidos da América.
Duração: 2 h 21 min.
Roteiro: Coralie Fargeat.
Direção: Coralie Fargeat.
Elenco: Demi Moore, Margaret Qualley, Dennis Quaid, Edward Hamilton-Clark, Gore Abrams, Oscar Lesage, Christian Erickson, Robin Greer, Tom Morton, Hugo Diego Garcia, Daniel Knight, Jonathon Carley.
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